Momento dedicado à Leitura

Tentaremos a partir de agora, toda sexta-feira, postar um texto de algum autor local, começando com  um texto do Rubens da Cunha.

FRAGMENTOS PARA UM FERIADO CHUVOSO

Pouco a dizer. Dentro, outras preocupações, outro veios. Pensa nos velhos, aqueles que se sentam e rememoram e falam, como se falar lhes fosse a vida, a manutenção da vida.

Nos olhos do cão uma tristeza sem par. É como se toda a ferocidade que lhe impuseram agisse como um câncer. Quanto mais ele fingia ser bravo, perigoso, assassino, mais os olhos, e por consequência, todo o corpo ficavam tristes. Nos cães, os olhos também são a janela da alma.

Veio me visitar. Andamos pelos novos parques da cidade, abrigados pelo guarda-chuva quebrado. Rimos algumas vezes, lamentamos tanta água no nosso feriado. Não que a chuva tenha nos deixado tristes, apenas lavou nossa casca, danificou nossas defesas. Ficamos puros feito árvore molhada. A melancolia vem do futuro, pois logo nos secaremos, logo voltaremos, sérios e adultos, à vida normal.

Normal: adjetivo que muitos nos impõe, que outros tantos desejam conseguir a todo custo, a toda aparência. Normal, aquela coisa que de perto ninguém é, assim nos ensinou o cantor baiano. O normal é um abismo onde temos que cair. Os que caem, e quase todos caem, invejam profundamente o medo daqueles que ficam à beira do abismo.

A preguiça é um direito inalienável dos gatos. Os humanos também tinham esse direito, mas inventaram o trabalho. Com saudade da preguiça inventaram o feriado. Se chove no feriado, a preguiça ancestral surge, fêmea lassa, e enlaça-se nas coxas, nas costas, na testa dos viventes, e todos dormem preguiçosos e felinos. A exceção, claro, fica por conta dos azarados de sempre que tem que trabalhar no feriado. Outra exceção é quando o sol brilha, muitos são obrigados a saírem com suas famílias, amigos e demais humanos, para se “divertirem”, para ter um momento de “lazer”: essa outra praga que obriga a preguiça ser deixada de lado.
Cada livro não lido é uma promessa não cumprida. A biografia de Cruz e Sousa equivale a caminhar todos os dias. “Ser e Tempo” de Heidegger equivale a fazer musculação. Talvez se a morte vier disfarçada de infarte ou diabetes, a leitura, a caminhada e a musculação comecem.

Cada vez mais as pequenas corrupções se tornam eufemismos. Estacionar o carro em fila dupla: “só um instantinho”. Não devolver o troco errado: “só uma vantagenzinha”. Não respeitar o direito dos outros: “é rapidinho, depois eu respeito”.

“Os sentimentos vastos não tem nome” escreveu Hilda Hilst, num de seus mais poderosos contos. É possível existir algo sem nome? Acredito que nomear tudo seja a forma que o humano encontrou para delimitar a vasteza, para visionar limites. Mesmo coisas deslimitadas como Universo, Deus, Futuro, Infinito, são postos dentro de cinco ou seis letras. A linguagem é nosso limite. A linguagem é nossa forma de estabelecer as fronteiras para o sentido, ao mesmo tempo, a linguagem é nossa libertação, nosso poder de ir além da realidade, ir além do limite, ir além da linguagem.

Frida Kahlo me olha. Ao ser olhado por ela, me fragmento.

Rubens da Cunha

Maiores informações sobre o autor:
www.casadeparagens.blogspot.com

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